Emilio Miguel Abella
Pioneiro da Ecologia

" Morreu em 21 de junho em São Paulo o pacifista Emílio Miguel Abellá, um artista plástico espanhol, nascido há 81 anos numa Espanha que questionou em plena Guerra Civil, sobraçando poemas de Lorca e reflexões de Ortega, depois de desertar do exército e trocar o fuzil pelo pincel.
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Tinha então 18 anos, certa simpatia pela esquerda antifascista daqueles anos 30 e profundo horror ao genocídio, racismo, tortura e toda outra forma de intolerância e violência. Entre estas formas, elegeu a indiferença e a apatia como inimigas e moveu-lhes combate diuturno, seja através de quadros retratando as vítimas de Mussolini, Franco e Hitler ou de uma militância artístico-ambientalista pautada por táticas contra o alheamento, omissão ou alienação. Primeiro em sua pequena Barbará, Província de Tarragona, depois em Barcelona, aonde começou a fundar núcleo e jornal humanistas em 1941 com o apoio de Bertrand Russel, Albert Camus e outros articulista de seu "Llum" (luz em catalão).
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Depois de muito esforço em pleno franquismo, mudou-se para Buenos Aires, a partir de 1950, ali perfilando-se ao lado de Ernesto Sabato na eterna Resistência Humanista. E desde 1964, em São Paulo, de início obtendo efeitos tridimensionais do poliéster para depois fazer a denúncia de um mundo avassalado pelo plástico e pelo inatural, sempre ao lado de ativistas como Aziz Ab'Saber, Piero Luoni, Raul Ximenes Galvão e outros poucos.
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De porte pequeno e atarracado, crescia ao reivindicar um mundo de humanidade, tolerância e paz, os habituais sotaque catalão e o ar de aldeão curioso cediam lugar à indignação e inconformismo e aos seus braços abertos contra o firmamento, numa postura gestual de questionamento crítico.
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Guardo na memória esta postura, bem como a fantasia de Pierrô angelical com que enfrentou o regime militar brasileiro, ao sair à frente da primeira passeata pós Ditadura de 64, que em 1975 paralisou o centro paulistano em protesto contra o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha. Tínhamos passado a madrugada na preparação do ato e Abellá ficou encarregado de congregar os artistas solidários à manifestação. Trouxe consigo 50 colegas vestidos de palhaços, carlitos e pierrôs que desarmaram os oponentes com sua singeleza e cambalhotas, puxando pelas mãos as senhoras do Movimento de Arregimentação Feminina (MAF) que participaram da passeata e nos livraram do Dói-Codi e do DEOPS, dos torturadores oficiais da repressão ditatorial.
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Antes disso, em 1973, vestido com uma máscara de oxigênio e de saiote e ostentando placa contendo reportagens sobre a poluição do ar em São Paulo (e um manifesto: "Humanidade. Exerço a liberdade de protesto pela Carta das Nações Unidas pelos Direitos do Homem e pela Constituição Brasileira. Não resisto suportar esse mundo de ratos no seu esgoto, sem esse gesto de dignidade contra a abjeção submissa de uma sociedade fatalista, condenada e sem futuro. Onde está o homem, Diógenes?"), já havia lançado as campanhas performáticas contra a devastação ambiental que reeditou contra os contratos de risco para a exploração madeireira da Amazônia dos anos 70; contra a poluição de Cubatão e do Tietê-Billings; contra o fim de Sete Quedas e, todos os anos, durante a recordação de Hiroshima-Nagasaki e a celebração de seu grande inspirador, São Francisco e seu amor aos animais.
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Nas reuniões mais candentes da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), nos abraços às áreas verdes urbanas remanescentes, no cerco às chaminés poluidoras da Metalúrgica Alliperti, nos shows ambientais da Fundação Pantanal Alerta Brasil e na distribuição dos então perigosos dossiês da OIKOS, Abellá era o elo de ligação com a comunidade artística, fundador do MAPE Movimento Arte e Pensamento Ecológico - que reunia a obra de artistas como Aldemir Martins, Rebolo, Penachi, Tozzi e tantos outros simpatizantes de uma cruzada ambientalista que teve como ponto de partida a criação da Comissão de Defesa do Patrimônio da Comunidade, ONG pioneira nascida para defender a Mata Atlântica que guarnece o manancial de Caucaia do Alto, ex-aeroporto metropolitano da Grande São Paulo.
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Quando faltou à manifestação contra a mutilação do Código Florestal, no Parque Ibirapuera, no início de junho, havia sofrido um derrame em seu apartamento de quarto e cozinha, permanecido quase três dias ali trancado e caído no chão, até ser resgatado pelo amigo Roberto Tripoli, vereador que lhe conseguiu o Título de Cidadão Paulistano e que ajudava a sua Liga pela Ecologia Humana a lutar pela implementação do Museu Mundial da Ecologia Pela Unidade Planetária ("a noosfera como agente ativo e a biosfera como agente passivo"; "sem ecologia humana, nem a ecologia biológica subsistirá").
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Subversivos? Não, éramos mero refugiados ambientais que tínhamos a obrigação de transformar em cidades bonitas e aprazíveis os cinzentos e poluídos acampamentos urbanos, despertando seus habitantes do estado de prostração indiferente ou dessa espécie de autismo de que padece nossa cidadania, mais por falta de estímulos do que por predestinação ao egocentrismo, à fealdade e à solidão suicidas.
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Para acordar o povo, nos últimos tempos, Abellá distribuía a todos uma simples folha verde de plástico, juntamente com um sorriso e a provocação - "guarde bem esta recordação do que estamos perdendo para sempre", que temperava com conceitos de Gandhi, Sartre, Kerouac, Ortega e estrofes do velho poema ("verde que te quiero verde") sempre a municiá-lo nessa batalha pessoal de que jamais desertou, contra a globalizada guerra civil em curso e em defesa de uma Cidadania planetária menos omissa e mais amiga da vida. "Etarra" da paz ou combatente do bem, já está fazendo falta aqui na trincheira, nesta noite interminável que por certo antecede nossa nova performance.
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Com o carinho de sempre
Randáu Marques
Jornalista
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Jornalista